Artigo de Opinião
Dr. Mário Frota, Presidente emérito da apDC – Direito do Consumo, Coimbra
Queres pão? Só com cartão!
“Nem notas nem moedas”
A propósito de um consultório publicado sábado último num dos matutinos de Coimbra, dirige-se-nos um professor da Universidade de Lisboa, estupefacto com o que se está a passar em certos estabelecimentos da capital:
“Há até cadeias inteiras que optam por esta prática: o pior exemplo é uma cadeia de padarias, de nome Gleba.
No outro dia, tive de pagar 82 cêntimos de pão com cartão…
Parece o início de uma anedota.
Há que usar o mais possível o Livro de Reclamações para alertar as autoridades para este escândalo!”
Ao que chegámos, neste neoliberalismo asfixiante em que cada um dita as regras e os poderes públicos se põem de banda…
Com efeito, em Portugal, depara-se-nos, por vezes, a recusa de aceitação de meios de pagamento convencionais de notas e moedas com curso legal.
E a pergunta surge inevitavelmente: será lícito aos distintos actores, no mercado, restringir por si só os meios de pagamento com curso legal, criando regras a que os consumidores se hajam de sujeitar?
A aceitação de notas e moedas em euros como meio de pagamento «deve ser a regra nas transacções de qualquer natureza», proclama o Banco de Portugal.
O numerário, como meio de pagamento, corresponde às notas e às moedas metálicas e é:
. Universal e de aceitação generalizada, ou seja, tem de ser aceite como meio de pagamento de bens e serviços, ao contrário dos cheques e dos cartões de pagamento, que podem não ser aceites no giro comercial;
. De liquidez imediata – o pagamento do bem ou do serviço é recebido de imediato.
Porém, como consta ainda do Portal do Consumidor do BdP:
“Fora da Zona Euro o euro não tem curso legal forçado.”
Os normativos em vigor são, porém, ‘coxos’: não estabelecem sanções em caso de recusa. É de norma sem sanção que se trata, imperfeição manifesta que importa suprir sem detença.
Mas «de uma tal recusa decorrem, porém, consequências no quadro da relação contratual entre partes; nos termos do Código Civil, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está adstrito, podendo inclusive o credor incorrer em mora, quando, sem motivo justificado, recusar a prestação oferecida»…
Registe-se que há, porém, restrições legais ao pagamento com numerário, como decorre da Lei n.º 92/2017:
“ É proibido pagar ou receber em numerário em transacções de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a 3.000 €, ou o seu equivalente em moeda estrangeira. Quando o pagamento for realizado por pessoas singulares não residentes em território português, e desde que não actuem na qualidade de empresários ou comerciantes, o limite ascende a 10 000 €.
É proibido ainda o pagamento em numerário de impostos cujo montante exceda 500 €.”
Tais restrições não se aplicam às entidades financeiras que recebam depósitos, prestem serviços de pagamento, emitam moeda electrónica ou realizem operações de câmbio manual. E também não se aplicam aos pagamentos correntes.”
O Banco Central Europeu interpela-nos:
“Podem os comerciantes recusar-se a aceitar numerário como meio de pagamento?”
Com base na Recomendação 2010/191/UE, de 22 de Março de 2010, da Comissão Europeia refere avisadamente:
- Os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes [os próprios e os consumidores] tenham acordado entre si a adopção de outros meios de pagamento.
- A afixação de etiquetas ou cartazes a indicar que o comerciante recusa pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é por si só suficiente nem vinculante para os consumidores.
iii. Para que colha, terá o comerciante de invocar fundadamente uma razão legítima para o efeito às entidades que superintendam nos sistemas de pagamento.
- Entidades públicas que prestem serviços essenciais aos cidadãos não poderão aplicar restrições ou recusar em absoluto pagamentos em numerário sem razão válida, devidamente fundada e sancionada por quem de direito…
A violação destas regras não tem, porém, entre nós uma qualquer sanção, o que é algo de grave.
Donde, o caminho, para se sustar a onda que pode, entretanto, submergir-nos, no afã de tudo reduzir ao digital (com as discriminações e as exclusões que daí decorrem), é forçar a mão ao legislador para que a recusa de aceitação de notas e moedas comporte sanções adequadas, proporcionadas e dissuasivas.
Só assim se cumprirá em plenitude a legalidade!