Artigo de Opinião

Dr. Mário Frota, Presidente emérito da apDC – Direito do Consumo, Coimbra

“POVO QUE LAVAS NO RIO”…

 

A propósito da hipervulnerabilidade dos idosos (e das XVI Jornadas Transmontanas de Direito do Consumo que a 5 decorreram em Mirandela)… trazemos a capítulo um texto, de há uns anos, do saudoso Conselheiro, António da Costa Neves Ribeiro, vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, co-fundador da apDC.

Um texto profundamente marcado pela ruralidade: país rural, país real que, na sua simplicidade, reflecte uma realidade de há anos, que persiste, no acesso universal aos serviços de interesse geral e na pungente pobreza energética que grassa entre nós.

E nos números astronómicos dos que vivem empalmados entre os limiares da pobreza e da miséria…

Ei-lo:

“O consumidor acabará sempre por pagar a factura!

Se não paga, então, mais tarde ou mais cedo, cortam-lhe a água, a luz, o gás ou o telefone.

Poupa na água, não se aquece. E tem o telefone só para receber chamadas da filha que vive em Lisboa.

Não telefona para ninguém!

Um dia, chega-lhe a factura da luz.

Ora, andou a mulher a poupar no gasto, deitou-se mais cedo, não acendeu a televisão, rapou frio de rachar para evitar ligar o “radiador”, e pagou três vezes mais do que gastou.

São gastos essenciais à vida. Não se pode ir para a cama com as galinhas, nem apanhar por sacrifício, frio de rachar, ou estar sempre a apagar a luz. E por aí fora…!

Por isso, a mulher reclamou uma vez… duas vezes, e sempre a mesma resposta de quem “fala, fala e não faz nada”!

A mulher releu a factura da luz… do telefone. Queixou-se à filha que vive em Lisboa.

E esta reportou-lhe as somas líquidas dos lucros da EDP, da PT e de outros fornecedores de bens de consumo essenciais.

E então, quem dá voz à minha razão, perguntou a mãe irritada, como se a filha, silenciosa, tivesse culpa de tudo?

“Não sei – respondeu a voz de Lisboa! O melhor é voltar a reclamar…”

E rematava, em jeito de estímulo para a actividade a que nos consagramos há mais de 40 anos: cumprimento a apDC – Associação Portuguesa Direito do Consumo, … e tiro-lhe o meu chapéu por, ao longo de [dezenas] de anos, ter sido a voz dos que, cheios de razão moral, não têm voz para se queixar, porque não se aquecem, porque não telefonam, porque são enganados no quotidiano das suas vidas, sem nenhuma hipótese efectiva de defesa dos seus direitos.

A sua voz tem sido a voz dos desvalidos da fortuna; a sua defesa tem sido a palavra da Associação (apDC) a que dá corpo e alma.”

Neves Ribeiro, guindado às altas esferas, jamais se dissociou dos reais problemas do País real, do País profundo, e da sorte de quantos, em verdade, economicamente débeis, vulneráveis, hipervulneráveis, hipossuficientes, sofrem as agruras do quotidiano. Jamais se deixou encarcerar nas Torres de Marfim para que determinados lugares persistentemente convidam.

Neves Ribeiro era Homem de uma rara percepção dos problemas correntes com que se confrontavam os consumidores, sobretudo os de mais modestos recursos. E da sua Carta de Direitos que constituía como que uma sua Carta de Alforria, em que se resgata a própria Cidadania que não pode de nenhum modo “andar a ferros”…

Neves Ribeiro deu um excelso testemunho de vida ao alinhar por quantos não se aquecem nos rigores do inverno, não fruem dos fulgores civilizacionais das energias de ponta, não se comunicam porque já ninguém o faz por sinais de fumo ou pelo som do tantã de que os primitivos se socorriam, não desfrutam dos benefícios que as tecnologias “impuseram” à vida dos mais afortunados, mergulhados num pântano de exclusões que os poderes das majestáticas e das cosmo-empresas vão alimentando impiedosamente…

E fazia-o com uma rara distinção, em gestos de tocante solidariedade, discreta mas empenhadamente, sem alardes, que os que consigo privavam captavam cirurgicamente. Na simplicidade de que se ornava e que era autêntica porque nela fundava toda a sua personalidade!

Quem cuida das vozes que, fora da capital sobretudo, mal reclamam pelo frio de rachar que passam, pela água que não consomem, pelas comunicações que fazem, pelos transportes públicos que não usam porque sem vigor para os ‘ensanduichamentos’, e pelas avultadas facturas que se lhes apresentam? Quem? Quem? Nesta sociedade voraz em que os direitos são uma utopia que ninguém ousa, quantas vezes, brandir porque sem recursos nem energia para tal?